As Partes e o Todo

 Este conteúdo foi inicialmente introduzido na página dos Enfoques.



Cada aspecto da realidade é parte de outros
aspectos maiores e é composto de outros
aspectos menores.


----------------------------------------------------------


As partes, o todo e a realidade como ela é

Conta-se um tempo atrás de um navio, maior que o Titanic, cujo naufrágio foi mais trágico ainda. Por algum motivo estranho essa história caiu no esquecimento.

Quando o navio fez sua primeira viagem, para mostrar sua grandiosidade, todos os habitantes de um pequeno país foram convidados e alocados nele, cada um ganhando uma cabine privativa. 

Como a viagem inaugural queria mostrar toda a magnificência do monstro, muitos outros recursos foram levados a bordo e os viajantes tinham acesso a eles e podiam usá-los à vontade. 

A viagem duraria muitos meses, e com um certo tempo, a população foi se incomodando em usar os espaços comuns: os religiosos não queriam conviver com os ateus, os eleitores de esquerda com os de direita, os héteros com os homossexuais, os novos com os velhos, as mulheres com os homens e assim por diante.

De início não pareceu tão ruim, porque as espaçosas cabines eram confortáveis para ficar. Por isso, muitas pessoas começaram com o hábito de, usando os recursos disponíveis do navio, decorar suas cabines de forma bela, harmônica e até suntuosa. Muitas pessoas ficavam maravilhadas com o que conseguiam produzir em suas belas cabines, verdadeiros refúgios da alma e do corpo.

Enquanto isso, para além das belas cabines e dos espaços comuns esvaziados, as coisas não iam nada bem na complexa maquinaria do navio. Afinal, a tripulação era imensa, e também estava enfrentando os mesmos conflitos dos viajantes, uns querendo ver os outros pelas costas. O navio começou a dar problemas. Os problemas aumentaram. Um vazamento aqui, outro ali, no início levados a sério, mas com o tempo, multiplicados ignorados, já que o navio se mostrava inafundável. 

Enquanto isso, as cabines estavam cada vez mais belas, charmosas, aconchegantes, cada qual com sua própria estética, agradavam perfeitamente aos seus moradores, que as preferiam em vez de ter que conviver nos espaços comuns com todos aqueles conflitos que tinham se instalado no navio. E porque não circulavam mais pelo navio, não viram os sinais de que ele estava fazendo água. Nem conversaram com a tripulação, dentre a qual haviam alguns que sabiam do perigo e o alardeavam, inutilmente.

O navio era tão grande que demorou dias, a partir do fatídico começo do naufrágio, para afundar. Algumas pessoas começaram a perceber logo, outras demoraram. O navio tinha dina menos botes que o Titanic, e era inútil lutar por eles. Assim, as pessoas permaneceram, fatalistas e distraidamente aproveitando sua última visão das belas cabines que construíram.

No ar percebia-se uma sensação geral de que, cada pessoa no navio, ao se concentrar em sua cabine e ignorá-lo, havia tomado a parte, a cabine, pelo todo, o navio, e esse erro fora fatal.


----------------------------------------------------------

Ficha do aspecto.

Nome: Partes e todo

Número: 28

Sigla: pato, part, todo


----------------------------------------------------------


Explicação do que não é:

As partes e o todo não são apenas aspectos materiais, coisas, que habitam a realidade concreta, mas também conceituais (como cada termo da definição de um conceito é uma parte constitutiva sua), pessoais (como cada experiência subjetiva própria é uma parte constitutiva minha) e temporais.

Termos semelhantes: componentes/composto, realidade menor/realidade maior, ingrediente/preparado, ...

Explicação do que é: 

As partes e o todo são um aspecto em par que é muito útil para compreender a realidade como ela é, ora partindo-se das partes e chegando-se a um todo maior, e tomando esse todo como parte e continuando no processo de encontrar novos todos, ora partindo-se do todo e decompondo-o em partes, e tomando cada uma dessa como um todo em si, e decompondo-a novamente, e assim sucessivamente, até encontrar as distinções necessárias para uma melhor compreensão e intervenção na realidade.

As partes são apenas partes justapostas enquanto não se integram num todo maior, e é isso o que a dinâmica partes-todo permite.

Métodos análogos e referências: análise e síntese, por exemplo.

Aspectos relacionados: a inclusão gera um novo todo, e a exclusão gera uma nova parte. 


---------------------------------------------------------------


A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


- Carlos Drummond de Andrade

---------------------------------------------------------------




O todo incoerente e a parte incompleta: aceita que dói menos!

Gastamos muito energia buscando a perfeição, a verdade completa e coerente. Mas é uma busca impossível, como querer seguir em dois caminhos opostos ao mesmo tempo. Precisamos aceitar essas verdades incompletas e incoerentes antes de chegar a uma síntese paradoxal que integre o completo e incoerente e o incompleto e coerente.

A coerência é a verdade das partes, e a completude é a verdade do todo. 

A realidade como ela é compreende as partes, os todos, e suas verdades, ou seja, é coerente, em parte, e completa, em sua totalidade. 

Por outro lado, querer a completude da parte, ou a coerência do todo, é que é irrealizável e nos faz sofrer e desperdiçar uma energia enorme.

Até onde pudemos compreender (essa é uma boa fonte), esse paradoxo aparece em outras áreas da sociedade. dDeparar-se com a incompletude e a incoerência pode acontecer em outros campos, como no teorema da incompletude de Godel. Embora a matemática não seja minha praia, e sujeito a críticas sobre as similitudes e dissimilitudes com esse tópico. análise: a verdade da parte é incompleta e coerente. A verdade do todo é completa e incoerente. E a verdade é feita dessas duas partes. 


---------------------------------------------------------------






Duas realidades opostas ao mesmo tempo.

Assim como não conseguimos ver a Lua inteira ao mesmo tempo, ou qualquer outra realidade em sua completude, também não aceitar algo simples como um copo meio cheio E meio vazio.

O mais comum ao ver a imagem acima é adotar a referência da água, e dizer que o copo está meio cheio, ou adotar a referência do copo, e dizer que ele está meio vazio.

E muitas discussões que temos entre nós decorrem de que uma pessoa está focando num aspecto enquanto a outra está focando em outro aspecto, ambos parciais, como na história do elefante, a qual recomendo a leitura.

Mas se formos capazes de integrar as partes, num todo completo, mesmo que incoerente, avançamos na compreensão da realidade e na capacidade de ter uma vida mais realizada e feliz.


---------------------------------------------------------------


Partes, todo, inclusão e exclusão.

Pela exclusão se começa a jornada no todo e se vai em direção às partes. Pela inclusão se inicia a jornada na parte e se vai em direção ao todo.


---------------------------------------------------------------


A qualidade decorre da visão do todo. A quantidade decorre da visão das partes.


A lógica da qualidade enxerga, em cada aspecto da realidade, um todo em si, único. 


A lógica da quantidade enxerga, em cada aspecto da realidade, uma parte dentre múltiplas partes, comparáveis e computáveis numa operação capaz de levar a um resultado diferente. 


A visão da qualidade gera objetos únicos e incomparáveis. A visão da quantidade gera ordenação entre as partes, escalonamento, gradações, e objetos que podem ser mensurados e computados numa operação que os transformará um todo maior integrativo das partes componentes.



---------------------------------------------------------------


A parte, o todo, os viéses cognitivos e as forças e contraforças.


Os erros cognitivos, ou viéses comportamentais, podem ser compreendidos como situações nas quais uma parte da realidade (a experiência imediata, minhas certezas, minha necessidade de confirmar minhas crenças etc.) tomam o lugar da compreensão do todo, gerando uma parte desequilibrada, fora de sua medida ou lugar. 


Vale lembrar que, cada uma dessas partes, antes de seus excessos, já caracterizavam aspectos importantes de nossas vidas e compreensão. É o seu desequilíbrio que a torna um viés.


Assim, cada viés carrega um aspecto, parcial, que tem o seu lugar e função no mundo, mas que desvirtuou-se e por isso prejudica uma melhor percepção da realidade. 


Portanto, as partes, em conjunção com o desequilíbrio (que está contido nas forças e contraforças), formam e contém para nós o tópico dos viéses cognitivos, visto que o viés é uma visão parcial, que vê muito de uma coisa, da qual está perto demais, e pouco do restante que existe no mundo.



---------------------------------------------------------------


As partes, o todo e os ingredientes da realidade

Um dos erros mais comuns de compreensão da realidade é acreditar que apenas uma parte a constitui como um todo.

Algumas pessoas, muitas dentre os materialistas, acreditam que apenas a parte concreta é suficiente para constituir a totalidade do que é essencial para a realidade. Mas não é.

Outras pessoas, muitas dentre os idealistas, acreditam que apenas a parte abstrata é suficiente para constituir a totalidade do que é essencial para a realidade. Mas não é.

Outros ainda, muitos dentre os cultores do desenvolvimento pessoal e espiritual, acreditam que apenas a parte subjetiva e pessoal é suficiente para constituir a totalidade do que é essencial para a realidade. Mas não é.

Assim, as partes - concreta, abstrata e pessoal - dentre outras, devem ser integradas num todo maior - a realidade como ela é - para podermos alcançar a compreensão necessária para uma vida melhor.


----------------------------------------------------------


As partes, o todo  e a realidade que é sobre mim.

Se pensamos no mundo gigantesco que está lá fora, dotado de infinitas realidades concretas, abstratas e intersubjetivas, podemos nos perguntar que sentido faria incluir o nosso autoconhecimento em nossas considerações para a compreensão do mundo.

Pois bem, essa é uma peça-chave da compreensão do mundo. Pois nós somos o epicentro do mundo que observamos, e o vemos bastante influenciados por quem somos.


----------------------------------------------------------


As partes, o todo e o fundamento da existência.

Muitas vezes quem olha para o todo ignora as partes que o constituem, às vezes porque lhe desagradam suas incoerências, às vezes porque são muitas informações, às vezes por outros motivos.

E em igual medida se olha para as partes e se ignora o todo - como no ditado no qual vemos as árvores mas deixamos de ver a floresta - às vezes porque a completude da realidade é grande demais para caber na nossa compreensão, às vezes porque estamos enamorados da beleza, coerência e simetria de um certo aspecto que é parte da realidade e que isolamos do restante.

A solução para ambos os problemas é reconhecer a existência simultânea das partes e do todo. E reinventá-las se necessário.

-----------------------------------

“I believe that scientific knowledge has fractal properties, that no matter how much we learn, whatever is left, however small it may seem, is just as infinitely complex as the whole was to start with.  That, I think, is the secret of the Universe.” 


—Isaac Asimov, I Asimov,1995


----------------------------------------------------------


As partes, o todo e o fundamento da variação.

A variação se mostra nas partes e no todo porque, a todo momento da realidade, as realidades menores, que são partes, estão constituindo novas realidades maiores, e essas, que são todos, estão se reconfigurando em novas realidades menores, numa dinâmica constante de transformações.


----------------------------------------------------------


As partes, o todo e o fundamento do pertencimento.

As partes, o todo, e suas dinâmicas próprias estão intimamente ligadas ao fundamento do pertencimento. Primeiro que as relações que o caracterizam são as relações entre as partes e o todo que formam esse último.

E segundo e mais importante, o pertencimento é a natureza do todo que integra suas partes, e das partes que se integram num todo maior. O pertencimento aparece como decorrência da natureza das partes que incompletas e parciais demandam e precisam de um todo que as integre.


----------------------------------------------------------


As partes, o todo e o fundamento da autonomia.

Da mesma forma que o pertencimento envolve as partes, a autonomia envolve o todo, pois esse, sendo completo (naquele momento pelo menos) apresenta com mais obviedade a sua independência, distinção, autorreferência e autonomia.

Não que o todo não tenha pertencimento, ele tem, ou que a parte não tenha autonomia, ela tem, mas em termos de relação original as pertinência que apontamos fazem algum sentido.


----------------------------------------------------------


As partes, o todo e a realidade pessoal.

Tudo o que é humano não nos deveria ser estranho. Mas muitas vezes é, dada a infinita variedade de nossas subjetividades.

A realidade pessoal é o aspecto que reservamos para tratar dessas subjetividades.

Quando penso em um momento difícil meu - uma discussão, uma frustração, uma mágoa, etc. - penso que eu fiquei irritado, eu estou odiando uma pessoa, eu estou com raiva. Mas, numa perspectiva mais libertadora, estou tomando uma parte minha - que realmente sente isso - por meu "eu", que é maior do que isso.

Esse "eu maior" é um eu ampliado, que contém nossas partes desafiantes, indigestas, mas também contém espaço para outras partes, outras possibilidades.

No “eu maior” o que antes era “eu" passa a ser apenas uma parte minha, dentre outras. 

É uma boa forma de ver nossas limitações e defeitos, como parte de um todo maior, ou seja, há espaço para novas possibilidades, apertar das partes "ruins" (isso já é um julgamento), que também pertencem.



-------------------------------------------------------------


Aqui você encontra a lista de todos os aspectos da teoria e pode usá-la para navegar por eles.


-------------------------------------------------------------

crédito da imagem: Imagem de <a href="https://pixabay.com/pt/users/publicdomainpictures-14/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=313585">PublicDomainPictures</a> por <a href="https://pixabay.com/pt//?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=313585">Pixabay</a>

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.